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24/10/2003
Metas do governo com o FMI podem piorar a situação da saúde nos municípios, diz Eduardo Jorge
Guilherme Macedo (*)
Agência CNM
O governo federal está fazendo uma manobra contábil para obter o superávit primário e cumprir as metas exigidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Isso terá um reflexo negativo nas contas das prefeituras, porque os serviços de saúde são executados pelos municípios e eles serão diretamente afetados, caso o governo Lula mantenha a atual política econômica. Essa é avaliação do coordenador da 12ª Conferência Nacional de Saúde, Eduardo Jorge, que, em entrevista exclusiva à Agência CNM, faz um histórico da situação da saúde no Brasil, a partir da emenda constitucional 29, dispositivo que vem sendo descumprido por estados e seguido à risca por municípios. Veja os principais pontos da entrevista:
Emenda 29
A emenda constitucional 29 foi criada porque nós não tínhamos recursos garantidos para essa tarefa gigantesca de construir um sistema universal num Brasil tão desigual. Ao contrário da educação, que tinha uma emenda constitucional desse tipo desde a Constituição democrática, nós, da Saúde, perdemos essa votação na Constituinte, e ficamos sem uma garantia orçamentária. O que acontecia? Mudanças bruscas de um ano para outro deixavam os secretários municipais, os secretários estaduais e o ministro da Saúde completamente à mercê de uma falta de recursos aguda. Então, conseguimos num trabalho suprapartidário votar uma emenda constitucional semelhante à da educação no final do ano 2000. E ela começou a funcionar agora em 2001 prevendo um orçamento mínimo obrigatório em nível federal, estadual e municipal.
Os principais objetivos da EC 29 são, primeiro, aumentar um pouco os recursos para a saúde, porque, para essa tarefa de gigante, o dinheiro que o Brasil dá é muito pouco. Só para exemplificar, em 2002, depois da emenda constitucional, já com um pequeno aumento do dinheiro da saúde, nós tivemos um aumento de 40 bilhões de reais somando o dinheiro federal, dos 27 estados e dos mais de 5.500 municípios. Dividindo isso por 170 milhões de brasileiros, isso vai dar R$ 260 por pessoa por ano e R$ 0,70 por pessoa por dia, para combater a malária no Amazonas, para conter a epidemia de Aids no Rio de Janeiro, fazer 100% do tratamento de renais crônicos e fazer 23 mil transplantes no Brasil - em 2002, colocamos o Brasil em segundo lugar em transplantes no mundo. Além disso, para fazer o programa Saúde da Família, fazer o maior programa de vacinação do mundo, praticamente com 100% de cobertura. É para tudo isso que o Brasil nos dá R$ 0,70 por pessoa por dia. Isso aí é o preço de meia passagem de ônibus. Portanto, o primeiro objetivo da emenda é esse: aumentar um pouco os recursos para a saúde.
O segundo objetivo da emenda é evitar aquelas mudanças bruscas de um dia para outro, quando um secretário municipal ou estadual de saúde perde seu orçamento, com a responsabilidade de pagar enfermeiros, agentes comunitários, sustentar hospitais e programas de vacinação. Então, a emenda tem esse segundo objetivo: dar perenidade orçamentária e permitir que as autoridades sanitárias possam fazer um planejamento.
Terceiro, impedir o que eu chamo de "gangorra orçamentária": quando o Governo Federal aumentava um pouco o dinheiro, o estado diminuía. Quarto objetivo da emenda constitucional: evitar a exportação de pacientes. O que acontecia com um município que tinha um prefeito que investia em saúde? Era cercado por alguns prefeitos irresponsáveis que compravam ambulância e despejavam os pacientes nos municípios responsáveis. Agora, com o gasto homogêneo nos municípios, essa política desumana, irresponsável e cruel de alguns prefeitos e governadores de exportarem doentes para estados e municípios que tinham maior investimento em saúde deixa de ter sentido econômico.
A emenda entrou em vigência em 2001 e os resultados são positivos, apesar de que muita gente ainda está apostando que ela não vai colar e, assim, desobedecendo a emenda constitucional. Não é o caso dos municípios, porque a maioria dos municípios – pelos dados que temos aqui em Brasília -, mais de 80% dos municípios estão cumprindo a emenda. Mas é o caso dos estados. No ano de 2002, 17 estados descumpriram a emenda constitucional. E não são estados pobres. São estados poderosos, porque os estados pobres como os do Norte, como o Acre, Roraima, Amazonas e Pará estão cumprindo. Quem não está cumprindo são estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul e, portanto, são devedores. O Ministério Público já deveria ter processado esses governadores e sei que há um processo contra eles no MP, mas não está andando, está muito lento, para se recuperar esse dinheiro para que esses estados, fraudadores da emenda constitucional, ressarçam o SUS e sejam punidos como a emenda prevê.
Existe um fato muito grave na emenda constitucional agora que é o descumprimento em 2004 por parte do Governo Federal. Porque, até hoje, os governos estaduais que estavam descumprindo tinham nas costas um processo do MP. Se agora o Governo Federal der esse mau exemplo, isso vai ter uma reação em cascata, porque vai "legalizar" esse crime dos estados e vai liberá-los. Inclusive isso pode ocorrer com os municípios, incutindo no orçamento da saúde todo o tipo de despesas. Como a saúde se relaciona com tudo, qualquer coisa é saúde. Por exemplo, segurança pública é saúde. Quando eu era secretário de saúde de São Paulo, a segunda causa de morte de lá era assassinato por arma de fogo. Por esse argumento, você pode colocar todo o orçamento da polícia no orçamento do SUS.
Com essa atitude do GF de, ao ter que cumprir a EC 29 e acrescentar R$ 5,5 bilhões no orçamento de 2004, deixar de colocar R$ 900 milhões e embutir R$ 3,5 milhões do Fundo de Combate à Pobreza, que já tinha a sua própria fonte, faz com que esse Fundo seja jogado contra uma pessoa em tratamento de AIDS, contra uma criança a ser vacinada. O Fundo de Pobreza veio para somar, nunca para subtrair. Isso é uma crueldade, um absurdo. E espero que, se o Brasil tiver lei, isso não prospere.
Essa inserção do Fundo de Combate à Pobreza nas contas da Saúde pode prejudicar a infra-estrutura dos municípios.
O programa Saúde da Família, que é hoje o programa mais importante do Brasil, vai ter em 2004, do ponto de vista real, menos recursos do que teve em 2003. Isso vai do Saúde da Família ao Hospital Universitário. Os HUs, que são o esteio da alta complexidade do Brasil, têm uma correção de 4%. Isso não desconta nem a metade da inflação, comparando 2004 com 2003. Portanto, a repercussão da agressão à EC 29 terá impacto imediato nos estados, que vão tentar "legalizar" o descumprimento da EC. No governo do Rio de Janeiro, por exemplo, até a limpeza da Baía de Guanabara está embutida no orçamento de 2004. O caso do RJ é um verdadeiro carnaval com o orçamento. E diz a governadora: "estou fazendo a mesma que o Lula está fazendo". Assim, é inevitável reverter essa atitude do GF a tempo e cobrar da justiça que os governadores devolvam o dinheiro ao SUS. Porque na hora de um parto, se ocorrer qualquer falha, quem será diretamente acionado será o prefeito. Na hora em que faltar recursos para o Saúde da Família, por exemplo, o prefeito será diretamente responsabilizado. Então, os prefeitos, se quiserem continuar nessa trajetória positiva que estão tendo em relação à saúde pública, têm que se mobilizar fortemente para que os estados e União cumpram a EC, como eles estão cumprindo.
SUS e municípios
Em todo esse percurso, tem uma questão que diz respeito aos municípios, que foi o princípio da descentralização. O SUS acreditou firmemente que os municípios eram e são o melhor local para executar os serviços. No início do processo, a maioria dos municípios brasileiros não estava preparada para isso. Mas as cidades se prepararam, se capacitaram, estudaram e formaram pessoas. Em 1990 o Ceará tinha cinco secretarias municipais de saúde; quando voltei lá em 2000, constatei que cada um dos municípios cearenses tinha sua secretaria. Isso é produto desse esforço dos municípios de assumirem a tarefa de organizar o SUS.
CPMF
Fomos nós da Saúde que conseguimos a CPMF, contra a vontade dos banqueiros, contra a vontade do Dr. [Pedro] Malan (ex-ministro da Fazenda). Depois, o próprio Malan deixou a CPMF entrar pela porta do Ministério da Saúde e, pela janela, tirou outros recursos. Foi uma manobra sórdida do Ministério da Fazenda. Mesmo assim, a CPMF trouxe ainda um pouco de fôlego para a Saúde, aumentando um pouco nossos recursos. A partir da EC 29, quando nós fizemos um cálculo, em nível federal, que é o orçamento do ano anterior, corrigido pelo PIB nominal – inflação mais PIB real -, conseguimos nos livrar desse tipo de manobra da CPMF.
(*) com a colaboração da assessora técnica da CNM, Cristina Neves