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20/02/2003
Publicado na Folha de SP de domingo, 16/2: FHC transfere dívida milionária para Lula
Decreto assinado 13 dias antes da posse deixou pendentes mais de 2.000 contratos administrados pela Caixa
FHC transfere dívida milionária para Lula
MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A garagem da Prefeitura de Tapes, a 105 quilômetros de Porto Alegre (RS), guarda um trator 0 km que deveria ser usado no cultivo de frutas. A pouca distância dali, postes e transformadores que deveriam levar eletricidade a uma comunidade rural foram retirados e levados a um depósito.
No país inteiro, passa de 1.000 o número de obras paralisadas ou serviços prestados e não-pagos em consequência de um decreto assinado no final do mandato de Fernando Henrique Cardoso.
A 13 dias de deixar o cargo, FHC baixou decreto mandando cancelar todas as despesas ainda pendentes do Orçamento da União de 2001. Na véspera de passar a faixa ao sucessor, assinou outro decreto deixando escapar alguns gastos, como o Disque-Aids. O resultado levou ao limbo mais de 2.000 contratos administrados pela Caixa Econômica Federal, que representam apenas parte das despesas canceladas e dizem respeito sobretudo a projetos de urbanização e saneamento.
O próprio texto do decreto indica que os pagamentos que viessem a ser reclamados deveriam ser bancados com o dinheiro do Orçamento para 2003, o mesmo que acaba de receber cortes de R$ 14 bilhões ou mais de 20% das despesas não obrigatórias.
Só no Ministério do Esporte, os chamados "restos a pagar" de 2001 somam cerca de R$ 40 milhões. Isso representa mais de 90% de tudo o que o ministro Agnelo Queiroz tem para administrar até dezembro depois do bloqueio de verbas anunciado na última terça-feira. Se o ministro usar o orçamento da pasta para honrar a conta pendente de quadras e ginásios cuja construção está em andamento, vão lhe sobrar R$ 3,1 milhões para manter a máquina e fazer novos investimentos. Isso sem contar com os pagamentos pendentes de 2002.
Outros ministérios estão em situação semelhante, como a pasta de Cidades e a de Integração Nacional -as duas que enfrentam o maior percentual de cortes no Orçamento deste ano (85% e 90% dos gastos foram congelados).
Só os contratos já executados e cujos recursos são repassados pela CEF somam uma dívida de R$ 118 milhões. A conta total pode chegar perto de R$ 500 milhões, segundo estimativa feita com base em dados do Tesouro Nacional. Solução, por ora, não há.
"O nome é calote"
O prefeito de Tapes, Luiz Carlos Garcez, diz que sua sorte foi ter deixado na garagem o trator, objeto de contrato com o Ministério da Agricultura para um projeto de fruticultura: "O trator chegou perto do Natal, fiquei com medo da transição e preferi deixar parado; sorte minha, agora pelo menos tenho como tentar devolver".
Ele ainda não sabe o que dizer à empresa contratada para o projeto de eletrificação rural. A CEF informou que o pagamento está suspenso até segunda ordem.
"Em português claro, o nome disso é calote", diz o presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski. Ele participou de reunião na quarta-feira com o subchefe de Assuntos Federativos da Casa Civil, Vicente Trevas, para discutir o problema, objeto de reclamações de oito entre dez telefonemas dados por prefeitos à Esplanada dos Ministérios. Ziulkoski contabiliza cerca de 1.500 municípios em apuros.
Em documento que levou ao Planalto, a Confederação orienta os prefeitos a paralisar as obras, suspender os contratos e tentar uma negociação no que diz respeito ao pagamento de multas e prejuízos, mas fala em cobrar da União na Justiça dinheiro do (já mirrado) Orçamento de 2003 para honrar os compromissos.
"O governo [passado" criou uma lei para moralizar a gestão do dinheiro público e chega ao final do mandato cometendo uma irresponsabilidade", criticou, referindo-se à Lei de Responsabilidade Fiscal. A LRF diz que nos últimos dois quadrimestres do mandato, o governante não pode assumir compromissos com despesa que não possa ser paga até o fim do período ou que tenha parcelas a serem pagas no ano seguinte sem ter disponibilidade no caixa.
Na prática, FHC não tinha alternativa: a regra manda cancelar as despesas comprometidas (empenhadas) num determinado ano até o final do ano seguinte.
No total, Fernando Henrique deixou de herança para o governo Lula, além da polêmica conta de 2001, ainda por contabilizar o que terá de ser honrado, mais R$ 10 bilhões de pagamentos pendentes referentes a 2002.
Na última quinta-feira, o ministro Guido Mantega (Planejamento) resolveu congelar uma parcela de R$ 6,8 milhões dessa última conta, referente a obras que ainda não teriam saído do papel.
Caso o governo tivesse honrado todas as despesas, sem deixar os "restos a pagar", o superávit primário obtido no último ano da era FHC seria bem menor do que R$ 52,3 bilhões: ficaria abaixo da meta acertada com o FMI.
Valor aumentou na reta final do governo tucano
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A conta dos chamados "restos a pagar" cresceu no final do governo FHC com o apoio do próprio PT. Nos últimos dias de governo tucano, o Siafi (sistema informatizado de acompanhamento de gastos federais) registrou compromissos de gastos (empenhos, no jargão técnico) de interesse dos congressistas, que acabavam de garantir apoio político ao aumento da carga tributária.
Em dezembro, o Congresso assegurou uma arrecadação adicional de cerca de R$ 5 bilhões ao primeiro ano de governo Lula. Por meio da medida provisória 66, foram prorrogadas as alíquotas de 27,5% do Imposto de Renda dos contribuintes pessoas físicas e de 9% da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) das empresas.
Na ocasião, o Congresso também deu carta branca ao futuro governo para aumentar de R$ 0,50 para até 0,86 a Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) por litro de gasolina.
A Folha apurou que cada um dos 584 congressistas dispôs de uma cota de R$ 800 mil para "empenhos" nos últimos dias do ano, parte da cota de R$ 2 milhões a que cada deputado e senador tem direito na lei do Orçamento, além das chamadas emendas coletivas. Emendas são a forma de destinar dinheiro público a determinado projeto.
As emendas parlamentares são também uma das principais moedas de troca no relacionamento entre governo e Congresso. Funciona assim: tradicionalmente, deputados e senadores destinam parte do dinheiro público a projetos que beneficiam suas bases políticas. Como o Orçamento só autoriza gastos, uma nova rodada de negociação com o governo determina o compromisso de gasto (empenho) e a efetiva liberação de dinheiro para honrar essas despesas. Quando o dinheiro não é liberado, mas já há compromisso de gasto, aparecem os "restos a pagar".
O ano eleitoral impôs um agravante ao jogo: parte dos pagamentos com os quais o governo FHC já havia se comprometido em 2001 foram rolados durante o ano sem que o dinheiro fosse liberado. Na época da eleição, a conta pendente relativa ao ano anterior rondava a casa do R$ 1 bilhão; só os contratos em que a Caixa Econômica Federal cuida do repasse somavam R$ 611 milhões de obras em andamento.
A eleição renovou mais de 40% da Câmara e do Senado, mas o problema político nos cofres públicos ficou para Lula administrar.
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